Por Flávio Dino
No Brasil, trabalho é coisa proibida para crianças e adolescentes até os 14 anos. É lei. A mesma lei que estipula que dos 14 aos 16 anos o jovem só pode trabalhar na condição de aprendiz, em atividades que permitam o controle desse foco pedagógico. Dos 16 aos 18, está impedido de exercer nada menos que 94 atividades, estipuladas em Decreto que foi assinado em junho de 2008 pelo Presidente Lula.
Somente a partir dos 18 é que ele pode se igualar às condições de um trabalhador adulto.
Essa é a nossa realidade legal - moderna, preventiva, em harmonia com o avanço do Direito e da cidadania que exigem os tempos atuais. Mas a realidade dos lares, das ruas e dos campos é bem diferente, como confirmam os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2007, divulgada no final de setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo esses dados, no ano passado quase 5 milhões de crianças em todo o país trabalhavam para ajudar a família ou para sobreviver. Mais precisamente, 4,8 milhões de brasileiros com idade entre 5 e 17 anos já pegavam no batente todos os dias, 39,3% deles em atividades agrícolas. Mais da metade dessas crianças - 2 milhões 500 mil 842 - tinha entre 5 e 15 anos, um contingente que representa preocupantes 6,6% da população brasileira nessa faixa etária. Ou seja, 6 em cada 100 de nossas crianças trabalham. Pior: nesse mesmo universo quase não percebido pela maioria das pessoas, cerca de 20 mil crianças não estudavam, apenas trabalhavam. Outras 62 mil 521 não estudavam e nem trabalhavam.
Dentre as que só trabalhavam e não freqüentavam a escola, as que recebiam remuneração chegavam a contribuir com um terço a até 100% da renda familiar, em 36% das famílias pesquisadas pelo Pnad em 2007. Mas descobriu-se uma situação ainda mais triste: 44,9% das crianças trabalhavam sem receber rendimento algum. A Pnad 2007 nos revela ainda o tempo que nossas crianças estão perdendo com o trabalho, um tempo precioso que deveria estar sendo dedicado às brincadeiras e ao aprendizado do conhecimento.
Quase um terço (30,5%) das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos ocupados cumpria jornada semanal de trabalho de 40 horas ou mais. Se os números já assustam, que dirá se os transportarmos para a imagem de crianças trabalhando o dia inteiro no sol a pino, como bóias-frias da cana-de-açúcar, cortadores de pedras ou no inferno das carvoarias clandestinas, ou ainda como empregadas domésticas. Crianças a quem está sendo negado o direito à infância, à alegria. Mas os dados da Pnad não apontam apenas para cenários negativos. Os 4,8 milhões de crianças trabalhadoras encontrados em 2007 representam uma ocupação de 10,8% dessa faixa etária - menos que os 11,5% registrados em 2006 e que os 12,2% de 2005. É uma redução pequena, porém, gradual, que ganha importância se lembrarmos que em 1995 o nível de ocupação das crianças entre 5 e 17 anos era de 18,7%.
Os números mostram também que a porcentagem das que só estudam vem aumentando ao longo dos anos, assim como está sendo reduzida a das que estudam e trabalham ao mesmo tempo. Avaliados em conjunto e contextualmente, esses pequenos avanços revelam que as políticas públicas orientadas a tirar as crianças do trabalho e devolve-las à escola, como o programa Bolsa Família , estão de alguma forma surtindo efeito. Observe-se que a maioria (71,7%) das crianças encontradas trabalhando em 2007 vivia em domicílios sem rendimento ou com rendimento médio per capita de até um salário-mínimo - justamente o público-alvo desses programas.
O Bolsa Família contempla crianças e adolescentes com idade entre seis e 17 anos e garante às famílias com renda de até R$ 120 por pessoa um benefício que varia entre R$ 20 e R$ 182 mensais, de acordo com a renda e o número de filhos. Para obter o dinheiro, a família precisa garantir que as crianças recebam todas as vacinas obrigatórias e tenham, pelo menos, 85% de freqüência nas aulas.
Muitos acusam o programa de meramente assistencialista, mas essa é uma avaliação muito simplista e que desconsidera o quanto essas pequenas quantias podem mudar e até determinar o futuro de milhões de nossas crianças. Sem acesso ou estímulo para freqüentar a escola e tendo que trabalhar para ajudar e até manter o sustento da casa, elas acumulam prejuízos irreversíveis para a saúde, a aprendizagem e, conseqüentemente, para sua qualificação para o mercado. Mais grave que isso: esses prejuízos se estendem pelas próximas gerações.
Especialistas da área alertam que quem trabalha desde criança tende a permanecer nesse mesmo ciclo de vida, daí que provavelmente seus filhos também serão inseridos nele e assim sucessivamente. Por isso, políticas que investem na educação tornam-se o grande remédio para acabarmos com o trabalho infantil no Brasil. Como a sabedoria popular nos ensina: lugar de criança é na escola; trabalho é coisa pra gente grande.
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