Imaginemos um marciano que resolve descer por aqui para colher informações sobre como é o dia a dia dos terráqueos e cai em Tutoia... justamente às 9h32 na Av. Paulino Neves, no dia 07 de setembro!
Sem conhecer nossos hábitos, sem conviver com eles, não poderia construir nenhum juízo de valor sobre o que ele visse, nem elogiar, nem criticar. Só descreveria. Essa era sua missão.
Ao desembarcar, observaria de imediato o semblante das pessoas. Algumas bem satisfeitas, sorridentes, outras carrancudas, outras pareciam fingir contentamento. Algumas pessoas bem cobertas, cheias de adereços. Outras exibiam brilho, carregavam placas com inscrições e frases indicando que lideravam algo. A maioria das pessoas a pé, em grupos, seguia para um mesmo destino. Havia gente parada e suas vestimentas eram diferentes, não seguiam um padrão. O marciano olhava ainda, os mais pequenos terráqueos, uns bem coloridos, outros cobertos do que parecia uma roupa que os fizesse suar bastante. Os pequenos também seguiam em lotes, agrupados e guiados por alguém maior que eles.
Um barulho ensurdecedor. O serzinho visitante gostaria muito de perguntar sobre tudo aquilo, mas ninguém o ouviria. Ele notou haver em comum no som que ouvia e pequenos grupos repetiam a mesma batida, regularmente.
Andando um pouco, encontrou uma construção mais elevada, com “outro tipo de gente” em cima, mas nada comparado ao que presenciara antes. Alguém falava segurando um pequeno aparelho. Muitos olhavam, muitos conversavam embaixo. Voltou a observar os semblantes. As pessoas de lá eram mais sisudas e pareciam encenar simpatia, as de baixo também pareciam fingir contentamento. Aqueles grupos que seguiam em alas se aproximavam um a um do elevado, para exibir algo que o marciano não conseguiu entender.
Honestamente, o marciano não entendeu nada, e voltou com suas anotações e registros do que ele encontrou por aqui.
[Imagino agora as impressões do nosso vizinho.]
O que chamam de tradição tutoiense, ou mais precisamente de cultura, é a exibição do mais patético espírito de patriotismo.
A data de 07 de setembro marca a independência política do Brasil, em relação a Portugal. Mas os bastidores do acontecimento que mudou os rumos do País nada se parecem com o que tentam reproduzir. Basta ler as obras publicadas sobre o assunto.
Se a intenção é imitar as apresentações das Forças Armadas, cujo desfile é milimetricamente compassado, harmônico e afinado, o tiro saiu pela culatra. Se o objetivo é lembrar o “07 de setembro de 1822”, a água saiu pelo ladrão.
Nada há nesses desfiles do mínimo de disciplina e civilidade que caracterizem a marcha militar. O que se vê é marcha descivilizatória: lixo nas ruas; bagunças no trânsito, donos de casa impedidos de estacionar seus carros na suas garagens; crianças ardendo, suando, expostas durante horas ao sol; opulência de brilhos e adereços, contrastando com a visível carência financeira dos desfilantes. Nada havia de harmonia entre marcha e música. Nenhuma coerência entre o contexto histórico e sua encenação.
Muito brilho, cores, ostentação de isopores, fantasias, alas e mais alas, bandas e mais bandas de música. Ops! Estávamos em plena Sapucaí? Um carnaval de discursos desencontrados, cujas palavras eram um festival de puxassaquismos e hipocrisia.
[Se olharmos os bastidores da festa e de sua preparação... aulas suspensas nas escolas, sacrifício financeiro para comprar roupas e enfeites, bingos para arrecadar dinheiro, barulho muito barulho e pouca consistência. Após o festival de exibição, as escolas voltam à sua rotina sem ensinar a ler, sem ensinar a pensar e fingindo que tudo está bem. Basta ostentar um "projeto desenvolvido para tornar os alunos insaridos na sociedade", basta cortar alguns papéis, bater alguns tambores e tudo está bem, os alunos estão prontos para "exercer a cidadania. A escola tem de ensinar a ler, escrever, calcular e ter autonomia de pensamento, o resto é consequência! "]
Se era uma celebração à Pátria, se o objetivo era despertar o sentimento patriótico (como ouvi de uma professora), onde estavam o Hino à Independência bem ensaiado e os outros símbolos nacionais? Vi poucos, no máximo as bandeiras. Boa parte, senão a parte toda dos alunos que desfilava, mal sabia do seu papel ali. As apresentações (e os discursos das autoridades) pouco lembravam os feitos de D. Pedro I e de seu conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva. Muitos dos professores que se sentiam obrigados a participar daquilo, seja pela Secretaria de Educação, seja por uma autoexigência habitual mesmo, também pareciam pouco se importar com o sentido verdadeiro daquele momento.
Bem se é tradição... se é mesmo tradição da cidade, os valores que estão sendo repassados à nova geração, com este evento, estão cada vez mais abrangentes, mas ocos. Largos, porque a diversidade de temas exibidos pela “criatividade” das escolas é no mínimo exótica. Ocos pela futilidade do momento, pela falta de conteúdo ensinado na escola, pela fragilidade dos princípios morais praticados nestas mesmas escolas. (Não é preciso lembrar que muitas daquelas crianças mal entendem o que leem – se leem – quando leem.)
Sendo um momento considerado “cultural” pelos tutoienses, ainda assim é vazio. Cultural? Pode até ser se levarmos em conta a repetição que vira hábito, e que anualmente é exibido e apreciado pelo povo. Mas quanto à acepção de que cultura é a manifestação artística de um povo ou conjunto de saberes adquiridos por alguém, pouco há de cultural nesses desfiles por aqui.
A carência leva ao contentamento com pouco. A falta de boas referências toma qualquer falácia como modelo de comportamento.
No seu diário, o marciano deve ter anotado:
“Os terráqueos são sofridos e se contentam em exibir seus enfeites para uns poucos que se colocam acima deles, como forma de agradá-los. Os terráqueos não se locomovem com inteligência, suas vias são bloqueadas para passarem as alas barulhentas, há buracos e obstáculos naquilo que chamam de ruas. Vivem ainda na sujeira causada por eles próprios. Seus pequenos e velhos são submetidos ao sacrifício de arder ao calor escaldante nas ruas. Poucas autoridades presentes, aliás só aquele a quem chamam de Prefeito, sua esposa e alguns funcionários. E ainda era dia de comemoração, conforme eu desconfiei.”
Mais um sete de setembro na história tutoiense.
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