Extorsão no Ministério do Trabalho
Há pouco mais de um mês, o ministro da Previdência, Garibaldi Alves, deixou seu gabinete no 8° piso do edifício-sede da pasta, na Esplanada dos Ministérios, desceu três andares e se reuniu com o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, que despacha no mesmo prédio. Garibaldi agendou o encontro, a pedido de um dirigente do Instituto Êpa, uma organização não governamental sediada no Rio Grande do Norte, seu estado de origem. A ONG recorrera a Garibaldi numa tentativa de fazer com que o Ministério do Trabalho voltasse a repassar verbas para um programa de qualificação profissional firmado com a entidade. Em vão. Na reunião entre os ministros, representantes do Trabalho elencaram uma série de irregularidades na prestação de contas do instituto e disseram que, em razão disso, as transferências não poderiam ser retomadas. Garibaldi e os dirigentes da ONG foram embora sem ver o problema resolvido. Atitude correta, republicana? Só na aparência.
Antes de procurarem Garibaldi Alves, os representantes da ONG tentaram resolver as pendências no lugar apropriado: as instâncias administrativas do Ministério do Trabalho. Esbarraram, porém, em um esquema de extorsão montado por dirigentes da pasta filiados ao PDT, partido do qual Carlos Lupi é presidente licenciado. O esquema funciona assim: o ministério contrata as ONGs para dar cursos de capacitação profissional. A exemplo do que ocorreu nas pastas do Turismo e, mais recentemente, do Esporte, muitos dos convênios servem apenas como fachada para desviar o dinheiro. Na hora de prestar contas, essas ONGs apresentam comprovantes de despesas inexistentes e listam alunos que nunca frequentaram aula alguma. No caso do Turismo e do Esporte, a fiscalização corria frouxa para permitir que os recursos chegassem rapidamente ao caixa dos partidos. No Trabalho, desde o fim do ano passado, partiu-se para o achaque direto. O ministério suspendeu repasses de dinheiro ao mesmo tempo em que os diligentes avisaram às ONGs que era preciso “normalizar as pendências” existentes – procedimento correto em caso de contratos micados. O problema é que, para “normalizar as pendências” apareciam os mesmos assessores de Lupi responsáveis por “criar as pendências”.
Em dezembro de 2010, o Instituto Êpa recebeu a segunda parcela de um convênio para qualificação de trabalhadores em construção civil no Vale do Açu (RN). O ministério determinou três fiscalizações na organização, levantando indícios de irregularidades. Imediatamente, ordenou que não fosse feito mais nenhum repasse. Sem dinheiro para manter os alunos em sala de aula, os dirigentes da ONG procuraram o ministério para tentar resolver o problema. Lá, foram avisados de que as irregularidades poderiam ser encaminhadas à Controladoria-Geral da União, órgão que tem o poder de declarar a inidoneidade de parceiros do poder público e. assim, impedi-los de receber recursos. Os diretores do Instituto Êpa receberam também um recado: a situação poderia ser resolvida rapidamente. Como? Pagando propina, conforme uma planilha de extorsão do PDT, que varia de 5% a 15% do valor do contrato. A quem? O contato deveria ser feito com Weverton Rocha, então assessor especial do ministro, ou Anderson Alexandre dos Santos, coordenador-geral de qualificação. Os dois respondiam ao então chefe de gabinete do ministro, Marcelo Panella, homem de confiança do ministro Lupi e também tesoureiro nacional do PDT. Foi para escapar do achaque que a ONG pediu a ajuda de Garibaldi Alves.
Nas últimas semanas, VEJA conversou com diretores de ONGs, parlamentares e servidores públicos sobre como os caciques do PDT comandados por Carlos Lupi transformaram os órgãos de controle interno do Trabalho em um instrumento de extorsão. Ex-integrante da cozinha do ministério, Weverton Rocha assumiu um mandato de deputado federal no início de outubro. Segundo dirigentes de ONGs e parlamentares, ele era um dos responsáveis por fixar o preço para a manutenção dos contratos e o restabelecimento dos repasses de recursos. Anderson dos Santos, por sua vez, era o encarregado de fazer o primeiro contato. “Para combinar o ‘acordo’, ele usa um telefone público que fica próximo ao ministério”, conta o dirigente de uma ONG, que pediu para ter a identidade preservada. Feito o acerto, o dinheiro é entregue a um emissário do grupo no Rio de Janeiro.
Não é de hoje que as ONGs que firmam convênios com o Ministério do Trabalho são alvo de achaque de pedetistas ligados à pasta. Em 2009, a Oxigênio, que detinha contratos para a realização de cursos de qualificação profissional de trabalhadores em São Paulo, sofreu com o assédio. A exigência inicial era de 30% de um convênio de 1,6 milhão de reais. Quando a Oxigênio se recusou a pagar a propina, a pressão se intensificou. “Você não tem defesa. Já prestou um serviço e sofre a ameaça de não receber. Se o sujeito te põe contra a parede, o que você faz?”, afirma um dos dirigentes da ONG. Esse dirigente admire ter efetuado um pagamento de 50000 reais, em dinheiro, a um emissário do PDT, na sede da entidade. “Eles quiseram ainda mais, mas eu disse não. Quando você tenta resistir, sua vida vira um inferno”. Procurado por VEJA, Weverton confirma que, na condição de assessor do ministro, recebia com freqüência representantes de ONGs. Ele nega, no entanto, que tenha exigido o pagamento de propina. “Quando uma entidade te procura, é porque ela tem um problema, mas nossa equipe sempre foi de muito profissional. Essas acusações têm o objetivo de prejudicar o ministro”, afirma. Enquanto monitoravam contratos em busca de irregularidades, dirigentes do PDT instalados no Trabalho também faziam vista grossa para entidades notoriamente enroladas.
É o caso da rede de fundações do gaúcho Adair Meira. Sua principal instituição, a Fundação Pró-Cerrado, recebeu um repasse de 450000 reais no dia 7 de outubro passado, apesar de a entidade estar sob investigação do Ministério Público Federal e da Controladoria-Geral da União por graves irregularidades em contratos com o próprio ministério. No mesmo dia. outra entidade do mesmo dono, a Rede Nacional de Aprendizagem, Promoção Social e Integração (Renapsi), recebeu mais 1,3 milhão de reais. Uma rápida olhada nas prestações de contas das duas ONGs é o bastante para verificar irregularidades gritantes. A Pró-Cerrado justifica a imensa maioria de seus gastos, 1,5 milhão de reais, com a contratação da própria Renapsi. No convênio da Renapsi com o ministério, por sua vez, a maior parte dos gastos – 941 000 reais – é destinada à Fundação Universitária do Cerrado (Funcer), mais uma entidade que tem como responsável o próprio Meira. Os quadros profissionais da Pró-Cerrado, Renapsi e Funcer, inclusive, se confundem. “Trabalhamos em rede para aproveitar ao máximo nossa capacidade. Sei que há entidades que usam esse modelo para fazer desvios, mas nossos processos são realizados com total transparência”, defende-se Meira.
A licença para operar os contratos com o ministério, apesar de todas as irregularidades, vem justamente da participação no esquema paralelo de arrecadação. Por mais de uma vez, Meira, que soma contratos ativos no valor de 18 milhões de reais com o governo, confidenciou a assessores próximos, que falaram a VEJA sob condição de anonimato, que teve de destinar parte de seus contratos ao caixa do PDT. “Foram-me impostas dificuldades para levar à frente os contratos. Todos os empresários recebiam pedidos de até 5% do valor do contrato”, disse. Neste ano, ele teve os repasses a seus institutos suspensos por 150 dias. Em outubro, todos foram autorizados. Mas ele garante que não foi preciso pagar nada pelo privilégio. “A gente ouve falar dessas coisas, o ministério é uma bagunça. Mas nunca fui cobrado”, afirmou em entrevista. A Procuradoria da República investiga. Já ajuizou uma ação civil pública pedindo a devolução de 14 milhões de reais da Pró-Cerrado. O Palácio do Planalto monitora o caso. Em agosto passado, por ordem da Casa Civil da Presidência da República, Lupi demitiu Marcelo Panella, seu chefe de gabinete havia quatro anos.
Panella deixou a pasta poucos dias depois de deputados federais do próprio PDT se reunirem com Giles Azevedo, chefe de gabinete de Dilma Rousseff. Azevedo ouviu que Panella, responsável pelo caixa do PDT, estaria cobrando propina de ONGs. Panella negou as acusações: “Jamais participei de qualquer prática ilegal. Saí porque não me adaptei a Brasí1ia e queria voltar para o Rio de Janeiro”. Também vindo do Rio, Carlos Lupi está à frente do Trabalho há quatro anos e meio. Não fosse pela intervenção do ex-presidente Lula, teria voltado para casa em 31 de dezembro de 2010, quando se encerrou o segundo mandato do líder petista. Dilma o manteve. Lupi até agora resistiu. Até agora.
O governador, as ONGs e o policial
O governo fez as pazes com o PCdoB. Foi na última segunda-feira, quando a presidente Dilma Rousseff empossou o deputado Aldo Rebelo como ministro do Esporte. Quadro histórico do partido, Aldo assumiu no lugar de Orlando Silva, demitido depois de ser acusado de receber propina e de participar de um esquema de desvio de recursos do programa Segundo Tempo para o caixa dos comunistas. Denúncias graves, mas que não impediram que a cerimônia de transmissão de cargo se transformasse numa surpreendente sessão de desagravo ao PCdoB e a Orlando Silva. Até a anfitriã Dilma elogiou a legenda e o ex-ministro apesar de dias antes, além de exonerá-lo, ter determinado a suspensão de todos os repasses da União a organizações não governamentais, numa decisão inspirada justamente nas irregularidades detectadas na atuação do PCdoB à frente do Esporte. O discurso da presidente, contrário à lógica oficial da “faxina ética”, teve razão de ser. Na edição passada, VEJA revelou que Dilma cogitou tirar a legenda do comando da pasta, mas recuou após pressão dos petistas, que cerraram fileiras em defesa dos comunistas a fim de evitar que os aliados implicassem no escândalo o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz.
Hoje filiado ao PT, Agnelo foi ministro do Esporte entre 2003 e 2006. Na época, era do PCdoB e tinha como secretário executivo o próprio Orlando Silva. Foi Agnelo quem tirou o Segundo Tempo do papel. Quando ainda tentava se manter na pasta, Orlando Silva lembrou que, certa vez, recebera o policial militar João Dias Ferreira, no ministério, a pedido de Agnelo. Parecia – e era – uma ameaça velada. João Dias foi quem acusou Orlando de receber propina e contou· em detalhes como funcionava o esquema de desvio de verbas de projetos oficiais para os cofres do PCdoB. Rebatendo as insinuações do antigo parceiro, o governador garantiu que suas relações com o policial eram apenas políticas. Na semana passada, porém, a Rede Globo divulgou gravações telefônicas, feitas com autorização judicial, que contradizem essa versão. As escutas mostram o que uma reportagem de VEJA já havia revelado em 2008: Agnelo, o policial militar e outras ONGs de Brasília acusadas de desviar dinheiro do programa Segundo Tempo, todas ligadas ao PCdoB, mantinham ligações umbilicais.
Numa das conversas gravadas, João Dias pede a intervenção de Agnelo para ajudá-lo a fraudar uma prestação de contas. A ideia era incluir estudantes num falso cadastro de beneficiários da ONG – o que, segundo a polícia, efetivamente aconteceu. O governador alega que as gravações não trazem nada que o incrimine e reafirma não ter relações próximas com João Dias. De resto, ele economiza nas explicações. Explicações que terão de ser dadas ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde está em curso um inquérito sobre irregularidades no Segundo Tempo. Na esfera judicial, Agnelo também jura inocência. A mesma “inocência” que, conhecida por petistas e comunistas, levou os dois partidos a selar um pacto no plano federal.
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